segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Outsider: quem não se enquadra- de Mário Bortolotto

A figura do outsider. Do cara que não se enquadra. Do sujeito que não faz questão de pertencer a nenhuma turma. O cara que no colégio sentava na última carteira, não falava com ninguém e ia embora sozinho. Havia algo de muito maneiro em figuras desse naipe.Numa sociedade onde qualquer babaca quer virar celebridade, a figura do "ninguém" sempre me pareceu o melhor modelo de vida. E aqui não vai nenhuma pretensão estilosa do tipo "é legal ser diferente". Porra nenhuma. O que eu penso é que simplesmente "ninguém precisa ser igual".Cada pessoa devia andar por aí rezando pela própria Bíblia, ou seja, fazendo suas próprias leis e fazendo uso de seu livre arbítrio. Mas não é o que tem acontecido.Assisto sem nenhum entusiasmo e com bastante perplexidade aqueles filmes americanos de turmas de universidade com aquelas indefectíveis fraternidades onde o cara passa por uma coleção inimaginável de humilhações apenas com o inacreditável intuito de ser aceito em uma fraternidade de babacas. Não é muito diferente das merdas dos trotes universitários brasileiros. Babaca não respeita geografia.Fico imaginando o que leva uma pessoa a essa necessidade doentia de ser aceito. E com o tempo me parece que em busca de aceitação as pessoas têm se padronizado de maneira assustadora e alarmante.Hoje em dia a rapaziada usa piercing, tatuagem (não que eu tenha exatamente nada contra o uso de piercings ou tatuagens, mas é que parece que grande parte da molecada começa a usar apenas numas de copiar outra pessoa e aí é esquisito), o mesmo corte de cabelo, gosta das mesmas músicas e das mesmas roupas e emprega as mesmas expressões ("Galera", "é dez", "é show", "baladinha" e outras que eu não consigo sequer repetir aqui sem ter o meu estômago revirado) e aí ele se sente parte de alguma coisa, é compreendido e aceito e não vira motivo de zombaria entre os demais, justamente por não ser diferente.Então o que acontece é muito simples. Se o sujeito tá num grupo onde o lance é odiar alguém, seja quem for, pode ser negro, viado, gordo, mulher ou o Mico-Leão Dourado, então o cara vai passar a odiar, ele nem sabe o motivo, é que a turma odeia e ponto. E se a turma pinta o cabelo de azul, então o panaca pinta também. E se a turma acha que é legal praticar artes marciais pra sair dando porrada em desavisados noturnos, então o cara automaticamente se inscreve numa academia e sai de lá o mó Steven Seagal.E acha legal sair de carro com uma piranha oxigenada (esses caras sempre andam com piranhas descerebradas que são apreciadoras de bravatas intimidatórias) e provocar o primeiro sujeito pacífico que eles cruzarem pela frente. E vai ser providencial se eles pegarem pela frente um carinha com um livro do Kafka no ponto de ônibus. Esses caras nutrem um profundo ódio por qualquer sujeito que consiga articular mais que duas frases inteligíveis. E as suas piranhas são as primeiras a aplaudir o massacre.Não tô aqui querendo de maneira nenhuma desmerecer o trabalho de alguns professores de artes marciais que sei o quanto são sérios e dignos. Mas é que sem a devida orientação eles estão criando um exército de babacas extremamente perigosos.E é claro que a mídia e a publicidade incentivam irresponsávelmente esse estilo de vida. Elas querem todo mundo comprando e consumindo as mesmas coisas, coisas essas que eles fabricam em larga escala para atender a demanda desenfreada.Numa novelinha como Malhação, só pra citar um exemplo bastante óbvio, a impressão que fica é que o roteirista escreveu um monólogo e depois distribuiu as falas entre vários personagens. Não há diferenciação de personalidade. Todos falam as mesmas coisas, do mesmo jeito e usando as mesmas expressões. Em resumo: fique igual e permaneça legal.Há um processo de idiotização total e irrestrita avançando a passos largos. E essa busca pela padronização e no conseqüente status mediano (estou sendo generoso com esse "mediano") que as pessoas têm alcançado ganhou por esses dias duas novas forças de responsa.A MTV “onde é que estão os clipes, porra?” estreou dois programas que são verdadeiras aberrações. O primeiro deles é o tal Missão MTV onde a Modelo Fernanda Tavares totalmente destituída de qualquer coisa que possa ser chamada de carisma, apesar de bonitinha (é o mínimo que se pode esperar de uma modelo) é chamada para padronizar qualquer sujeito que não esteja seguindo as regrinhas do que eles chamam de "bom gosto". Então se uma garota não fizer o gênero patricinha afetada, então ela automaticamente está out e a missão da Fernanda é introduzir a "rebelde" ao mundo dos iguais.E dá-lhe o que eles chamam de "banho de loja". Se o cara usa roupas largas e o cabelo sem uma preocupação fashion e ainda se diz roqueiro, então eles transformam o coitado num metrosexual glitter afetado e por aí vai. Parece que a mulher vai dar um jeito no quarto de um sujeito. Ela diz que tá tudo errado no quarto do cara. Como assim? É o quarto dele, porra. Enfim, é proibido ter estilo. Quem não se enquadra, sai de cena. Em resumo, um programa vergonhoso.Mas o pior ainda é o outro: O inacreditável e assustador Famous Face. Sacaram qual é a desse? Uma maluca encasqueta que quer ficar parecida com a Jeniffer Lopez ou com a Britney Spears e tal estultice é incentivada. Em resumo, a transformação é filmada e testemunhamos a verdadeira frankesteinização sofrida pela pobre iludida. Ela se submete à operação plástica, lipoaspiração e o caralho. Chega a ser nojento. Eu não entendo qual é a de um programa como esse. Será que a indústria da cirurgia plástica tá precisando de uma forcinha? Eu duvido. Nunca vi se falar tanto em botox, silicone, lipo e outras merdas. Todo mundo tentando evitar o inevitável. Todo mundo querendo retardar o tempo incontrastável. Vivemos cada vez mais em uma gigantesca e apavorante Ilha do Dr. Mureau. Foda-se Dorian Gray. Eu sou bem mais as rugas de Hemingway.

Mário Bortolotto é dramaturgo. Este texto, reproduzido aqui, foi originalmente publicado em seu blog Atire no Dramaturgo. Mário Bortolotto

domingo, 21 de dezembro de 2008

Neblina

A alma é um negócio frágil e transparente como aqueles copos e pratos daquela parte do shopping que todos dizem pra eu não tocar, andar devagar, e ter cuidado quando eu entro. Brilha de vez em quando, quando poucos estão olhando. Desconfio até que quase exploda de tanto brilhar, mas só se não houver ninguém. Pois a alma não gosta de público. A alma gosta de admiração, mas autógrafo já é demais, e velas acesas incomodam. De verdade, sem onfender... Espíritas não são bem vistos.
Ultimamente tenho sentido a minha meio arredia. Não sei se é a proximidade do final do ano, ou o clima de Suíça que se instala em Belém nesse tempo, com perdão ao frio verdadeiro dos suecos. Não sei se é o tempo passando, e eu que vou fazer 20. Sei que a minha alma anda me estranhando. Como se não quisesse mais me olhar nos olhos. Se esquivando de abraços e qualquer outro tipo de afago. Preferindo amar sentada no meio-fio, esperando a vontade de ir embora vir mais tarde.
Talvez ela só queira que alguém derrube a cristaleira. E olhe para o lado enquanto ela se troca.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

bêbado

Assuma suas olheiras, como se fossem contas.
E são, no fim das contas, uma hora iam cobrar...
as mentiras de que o dia nunca mais ia raiar...
a garrafa que disseram que nunca ia secar...

Assuma e suma,
sem reclamar.

É isso

O melhor dos lugares
talvez não trouxesse a paz
que a ausência da tua casa
me traz

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Sintoma

Deve ser pela janela gradeada
ou pelo tempo em que meu avô
botava o meu dedo no seu copo
e depois na minha boca e o gosto
de uísque até hoje me acompanha
e talvez um dia eu esqueça, quando
não me importar mais com esse calor
e essa vontade louca de gritar
que não me deixa dormir cedo
nos sábados e sextas-feiras.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O Matador

Lembras de todas as vezes que pensaste na tua morte? Pelo menos umas milhões.
Errou em todas.
Agora quem vai decidir sou eu. Se vai doer ou não. Se vais saber ou não. É, eu posso muito bem te matar sem nem saberes que estás morrendo. Fazer com que não percebas nada, e ainda te divirtas. Mas não vou te dar esse prazer. Assim é muito fácil. Qual seria a graça de ter a vida de uma pessoa nas mãos e não se divertir? Não, eu não. Vou é malinar.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Paixão

Algo do limão da noite
na minha boca sedenta de vida
e gosto de mordida com saliva
e sangue entre a carne e a unha.
E mais outros prazeres desses
de sentir o suor descendo pelas costas
- enquanto espero horas em filas, em pé,
enquanto quero mais de sol
sobre a cidade-

Algo da malícia das cadelas
e seus passos elegantes
e seus olhares arrogantes
aos caninos lá atrás,
tão insanos e lambidos...
Animais
- resto de coca na mangas
da camisa-

Algo das platéias caladas
e das mãos sempre dadas
sob as mesas dos bordéis.
E mais tapas de vontade
e beliscões nas falhas
do vestido, e dos anéis...

Essa vontade de Sade
de estalar meus dedos
em ti.

Algo de coisas de afogado
de ficar boiando anos até
poder ser morto de verdade,
com direito a vela, choro
e cafezinho passado na hora.

Bem que tentaram me avisar,
mas ainda não posso
fingir que ouvi.

Começo de romance

O homem decidiu que não dormiria nunca mais. O tempo era pouco e ainda havia muito o que fazer.

tudo certo

não há tempo
para ser errado
se isso quiser dizer
tudo como se espera

sim, pois é fácil
muito fácil
ser um saco

basta não seguir
a receita

simples
veja

não cuspa na platéia
e não serás um punk:
era o que esperavam

não deixe a família
por um dia de amigos:
todos esperam

contrarie o seu signo
mime os inimigos

não há nada mais grosso
que ser fino

(sem trocadilhos, por favor)

domingo, 16 de novembro de 2008

Ladrão

Se pudesse, diria que o problema é esse sentimento de que é preciso fugir todos os dias. A razão porque todos falam tão rápido, o medo de ouvir a própria voz. Diria que não é tanto pelo dinheiro e nem pelos carros, ou pelo futuro brilhante que não cala, já que no fundo não há garantia de nada. E tentaria romper o silêncio devagar, para não parecer estúpido. Também diria que de todos os lados o risco é alto, tanto para quem paga o imposto quanto pra quem roubo a carga. O produto, como dizem no desmanche. Tentou explicar um dia, mas não deu.
Escreveria uma carta, contaria tudo. Desde o primeiro dia e do peito como tava, até os olhos com os faróis no rosto. Bem que sentiu algo estranho.
Se pudesse, cairia fora muito antes desse dia.

sábado, 15 de novembro de 2008

Boni

O cão caiu da escada. São lançadas as hipóteses. 1. Está velha, a bichinha, tadinha. Dez anos é muito pra um cachorro e ela já anda calada faz tempo. 2. Escada maldita. Anda derrubando todo mundo. Sabia que outro dia eu também caí? Quase me espatifei. Vai ver é só urucubaca. Reza forte e banho de cheiro resolve. 3. O chão devia estar molhado, é claro. Ela só escorregou. Sorte que não aconteceu nada.
A menina saiu como uma louca correndo ao ouvir o barulho do baque. Gritava meu deus o que foi que aconteceu, enquanto pensava se um pano molhado servia pra alguma coisa nessas horas, e numa cachorra. O desespero da menina se explica; tem quase a idade da vítima, um pouco mais velha. Cresceu ouvindo e vendo a outra, seu outro lado. E os outros dizendo, ela veio contigo pra cá. O desespero aumentou ao ver o corpo jogado, todo torto. Mas deixa de escândalo, que ela tá bem.
Os olhares de pena começaram tímidos. Primeiro pelo jeito de quem pede desculpas da cadela ao se levantar, depois na humildade e resignação dos hábitos, como se nada tivesse acontecido. Se é conosco, uma queda é assunto pra quase um mês. Nem que tentando disfarçar. Mas nela não, durou só o tempo da dor. E isso ficou como coisa frágil. Coitada dela, nem sofrer sabe direito. Está ficando velha.
É melhor que suma quando morrer. Pois não vai poder mostrar o quanto nada disso importa. E é melhor nem tentar para não nos assustar. Boni sabe o quanto precisamos que alguém, de vez em quando, caia da escada. Não nos contraria. Ela se limita em dormir e às vezes me olhar, agora, enquanto escrevo.

HOMEM É ATROPELADO NA AVENIDA E MORRE DE OLHOS ABERTOS, SORRINDO.

Motorista alega não ter visto a vítima, mas os passageiros e pedestres presentes no acidente o acusam de irregularidade.

As mulheres nunca andam do mesmo jeito. Olha aquela ali. Parece que vive jogando ping-pong pelo modo dos braços balançarem. E as pernas sempre em espiral, de forma a não deixarem saber se sobem ou descem enquanto andam. Uma espécie de escada em movimento, indo e vindo, acima e abaixo, no ritmo da bola, pelo peso da raquete.Passa por nós como um carrinho de supermercado. Interessante isso. Algumas mulheres parecem voar quando chegam perto. Apertam o passo, desesperadas, e no fundo nos enquadram em sua visão periférica. Nós sabemos. Esta faz que não quer, mas quer que a sigamos com os olhos até descolar as retinas ou mostrar os ossos do pescoço. Quer sentir nossos troncos voltando-se, sedentos, para vê-la seguir, para admirar seu gingado natural cruzando a tarde. Quer tudo enquanto as rodinhas deslizam no chão lustrado.Não é do tipo que deixa cair bilhetinhos em sua passagem, mas por via das dúvidas olhamos sérios para os seus dedos e sua bolsa. Nunca se sabe. Nada é impossível. Ainda mais quando se trata de uma mulher, que além de linda, caminha como se jogasse ping-pong. Talvez o seu salto quebre quando pisar naquele pau entre a calçada e a rua, sobre a vala. Talvez os dois saltos quebrem. Já pensou, ter que ajudá-la por uma boa causa, fazer-se de bom cidadão prestativo? Nada mal. E depois de junta-lá, levá-la pelas mãos até um posto de saúde e pedir ao enfermeiro: posso, eu mesmo, passar a pomada?São apenas alguns segundos. Dois, eu acho. Os pés vão firmes, objetivos, nem esboçam sinais de curvas ou paradas repentinas ou mudanças de destino impulsivas. Dois pés caretas. Acho que até um pouco chatos, ou muito chatos, em todos os sentidos. Pés de imperador impotente, marchando pra guerra, fugindo da imperatriz. Nos dois segundos que passam nos deixam loucos. O esmalte descascando no dedão direito tem um charme inexplicável. O joanete saliente dá um tom de esforço e força. Até o dedinho sem unha, que quase não se deixa ver.Sempre cada uma do seu jeito. Olha aquela outra, vindo na nossa direção. Corpo cem por cento despreocupado. Aparentemente, totalmente aberta ao amor. Vem de sorriso aberto, espontâneo. Vem sussurando algum nome no sorriso. Dessas pra gente casar, meu amigo. Uma casa, uma praia, um abraço. Tanto que eu nem pensei muito em tudo o que eu vi, porque eu não tinha nada pra pensar. E essa sim. Essa sim me faz virar o tronco, entregue por inteiro. Sem querer saber seu rumo ou inventar metáforas para o seu andar. Acompanhando o cheiro e a cor da sua passagem e indo atrás. Flutuando na calçada, pisando nas poças de lama. Sem me importar com quantos segundos o mundo dura. Ou com quantas mulheres andam assim.Sem me importar, sequer, com os ônibus loucos que avançam sinais nos fins de tarde.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O que dizem por aí

"É preciso aproveitar as brechas. Fazer até onde dá. O cara não pode ser nem santo nem escrachado. Tem que fazer direito. Se até o diretor rouba...Lembra daquele evangélico? Tinha um evangélico que trabalhava aqui que era todo santinho. Aí um dia o chefe pegou ele fazendo cera. Disse que ia mandar ele pra rua e tudo. Ele chorou, se humilhou, disse que nunca tinha tirado um centavo da empresa, em nome de jesus. O chefe respondeu na cara: não roubou porque não quis. Por isso que eu digo, tem que saber usar as brechas..."

Cobrador do Ufpa-P. Vargas