sexta-feira, 29 de maio de 2009

Obsessões- A VELHICE

Hoje começo uma sessão de textos novos neste blog. Chama-se "Obsessões" e surge com um objetivo puramente individualista, auto-investigativo, eu diria. No entanto, acredito que sirva como um registro para os que mantêm interesses em relação ao funcionamento da mente humana e aos nossos colegas que, num futuro distante ou em outras galáxias, acabem esbarrando com estas mau-traçadas linhas virtuais. Freud é a musa inspiradora dessa sessão de textos. Sabendo que nunca terei coragem ou inteligência ou disposição suficientes para frequentar um psicanalista, resolvi fazer deste espaço on line o meu divã. Um divã cínico, é claro, mas ainda analítico. Meus pudores talvez me impeçam de lidar com obsessões mais complicadas, cabeludas, mas com outras tantas acho que posso lidar.
A velhice é um tema que me persegue. Seja em filmes, peças, poemas, fins-de-semana, cemitérios, aniversários. O desenho das rugas nos rostos, os primeiros esquecimentos involuntários, as repetições de histórias. Fatores e situações como essas me causam verdadeiro fascínio desde criança. Lembro do dia em que percebi que eu também envelheceria. Eu era apenas uma criança brincando numa piscina de plástico com primos e primas no quintal da casa de uma tia-avó. Estávamos há pelo menos três horas ininterruptas na água. Não lembro bem qual de nós percebeu." Olha, como tá o teu dedo, Abílio! Engilhado que nem o da vovó!" Os dedos da vovó. Os meus dedos. Um raciocínio fluiu como um fio d'água. Os meus também um dia ficariam assim; frouxos, secos, engilhados. O tempo seria como uma piscina de plástico. A gente cresce mas a água continua lá. Até que o corpo engilha todo e fica feio, frouxo, seco. E a nossa cabeça esquece o nome dos netos. E o nosso peito não respira tão bem.
Minha convivência com meu avô em seus últimos anos de vida talvez tenha contribuído para esta minha obssessão. Seus aborrecimentos, seus incômodos, suas lembranças, fazem tão parte de mim quanto os meus incômodos, minhas lembranças, meus aborrecimentos. Meu avô se mostrava parte de um mundo que não existia mais, exatamente como eu me sentia em minha pré-adolescência. Que coisa mais ridícula; no fundo a pré-adolescência é só uma parte metida da infância. E mais perdida. O começo da encrenca. O fim estava com o vovô. Era isso que nos unia.
Dois anos depois da sua morte eu interpretei um velho de 80 anos no teatro. Ainda hoje encaro a "Casa das quatro estações" como o meu último adeus ao velho Abilhão, apesar de odiar o título. Inconscientemente, armei tudo como uma bela despedida. Hoje, dois anos depois da encenação da peça, enxergo claramente que, no fundo, o meu objetivo era chegar mais perto do velho que
o meu avô criou em mim.
Ah, os velhos andam surpreendendo.Dias atrás comentei com alguém que os jovens dos anos 60 hoje são os velhos 2000: revolucionários e desconcertantes, como os outros. São uma velhice inédita na história ocidental. Inclusive por seu aspecto monstruoso. Um exemplo que um dia se tornará clássico é a atriz Suzana Vieira. Acho difícil imaginá-la em outra época. Alguns casos semelhantes podem ser identificados, admito. Mas longe de apresentar os elementos estéticos, cênicos e dramáticos tão fortes quanto Suzana; um personagem que nasce por um misto de hedonismo, ousadia e narcisismo que só poderiam coexistir em nosso tempo.
E Bob Dylan? E Caetano Veloso? E Ney Matogrosso? O primeiro surpreende por continuar cantando mal e ainda sim figurar entre os mais originais e ativos (diga-se, de passagem) compositores do velho e do novo século. "Modern Times" é um disco imortal que torna-se onipresente para quem o consegue sentir. Caetano é acusado de ter caducado. Para mim, caduco ele já era há muito tempo. O Tropicalismo nada mais é que uma doce brincadeira caduca. Portanto, Arte, se permitem minha definição petulante. Assistir o seu show, no último final de semana, foi uma das experiências mais revigorantes e inspiradores que já tive em minha vida. Ver aquele senhor de cabelos grisalhos rebolando provocadoramente no palco com uma flor entre as pernas e perguntando "Eu sou neguinha?", me fez sorrir e pensar; "o velho aqui sou eu". Foi nessa hora que começei a pular.
Não vou falar do Ney Matogrosso. Seria covardia demais.

Cine Líbero

O braço da poltrona do cinema
está vazio,
vazio...
Um mundo inteiro de braço só meu.

Acaba o filme. Levanto.
Comento comigo o final.
Me espero sair do banheiro
e me levo,
de mãos magras,
para a casa.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Coisa Pouca

Nada de palavras
nesta sexta-feira à noite,
só o ritmo dos passos
gêmeos ímpares calados,
um silêncio de manhã.

Esta sala não me cabe
em seu número de lados.

Pouco foi dito das luzes
vistas deste meu andar
e das pessoas pequeninas
que exibem suas sombras.

Pouco se vê dos abraços
doidos pra entrar no quarto
e pelos desejos fartos
fazer toda luta vã.

Esta sala não me vale
com seu vale de enganos

Nada de pequenas causas
nesta noite lancinante
sem entrega ao tal amante,
só o cheiro de viagens
e olhares abraçados
esquentando o colchão.

Muito foi dito das pontes
e granadas sobre o rio
e das ilhas sob a chuva
quando em nossas madrugadas

Muito visto sobre a pele
a ardência adolescente
que me faz rodar ardente
quando suspiras assim.

Esta sala nada sabe
do meu gozo e do teu beijo.

sábado, 16 de maio de 2009

Definição

A negação consiste simplesmente
No ato verticida de mover a vista
Para onde deslizam os pés.
Pode-se exercê-la tanto

Como arma decidida,
Fera viva,
forte
e resolvida,
Quanto apenasmente em pura
Falta de opção.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Canários

Pode até tentar fugir, meu bem,
Mudar a rota, o caminho da rotina,
Isolar a briga da vida com a sina.
Do destino retirar o chão.

Quem sabe sirva
A toca quentinha do quarto,
a saudade num retrato,
Ou talvez
uma nova e genial
inovação.

A raiva vai também
Tentar lhe ajudar
E pôr as coisas no lugar
Fazendo mar virar sertão

Mas não se iluda, não

Esse seu peito bravio
é apenas sofrido.
Canários não cantam
em fones de ouvido.
E não repetem a canção.

Sem voz

O ritmo dos dentes
tranca
a trama do teu falar
e, de uma vez,
me atrapalha.

Fico eu sem poder
entender
o teu lábio
de cima secando
dançando
no ar.

A tecla do mute
apertada.

Do Tratado sobre a tolerância, de Voltaire

"O grupo que hoje diz:
'crê como eu creio, ou Deus te condenará'.
Poderá mais tarde dizer:
' crê como eu creio, ou irei assassinar-te"

terça-feira, 5 de maio de 2009

Dizer o quê?

[...]
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

(Álvaro de Campos)